sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Turma da Mônica como uma metáfora comunista

  Os quatro personagens principais dA Turma da Mônica personificam ideias centrais do ideário comunista em sua composição e no desenvolvimento de suas atitudes. Os personagens dividem-se em dois polos, relacionados às classes que representam: Mônica e Cascão representam o proletariado, Magali e Cebolinha a burguesia. O desenvolvimento apresentado ao longo dos anos dá uma série de exemplos claros do simbolismo embutido em cada um deles.
  Começando pela personagem principal, Mônica engloba a características fundamental do proletariado, da mão-de-obra que sustenta o sistema: a força. A força física que Mônica possui serve tanto como uma simbologia direta do trabalho braçal, das atividades de chão de fábrica desempenhadas tradicionalmente pelo proletariado, como também serve, no plano metafórico, como uma alusão à força de trabalho, que não engloba as atividades desenvolvidas em si, mas o capital social que possuem. Eis aí o vigor de toda nossa sociedade capitalista: nas massas, no trabalhador, na Mônica, que os sintetiza e representa. O simbolismo físico também muito evidente: que Mônica use sempre um vestido vermelho não é mera coincidência - essa é a cor que representa historicamente a causa comunista, que manifesta o desgaste das instituições que tiram do proletariado, a indignação contra o sistema, a vontade de revolta, o levante. Ainda dentro do simbolismo físico, destaca-se a figura de Sansão, que funciona como símbolo das ferramentes sociais que o proletário utiliza, bem como de uma materialização da força, quem em Mônica se mostra grandemente simbólica, não concreta. Sansão é a ferramenta de mudança. O próprio nome revela um simbolismo histórico importante: Sansão é aquele que se revolta contra aqueles que o traíram e enganaram - assim como o proletariado se revoltará contra o burguês, que prometeu o sucesso e boa vida ao proleta através de uma vida de dura trabalho, mas que nunca permitiu que essa felicidade se concretizasse. Sansão é aquele que é despido de sua força (os cabelos) e jogado a subalternidade; é o mais forte, o que possui poder de fato, mas que não pode usá-lo. O proletário é despido de sua força simbólica (a consciência de classe, é alienado do valor de seu trabalho) e jogado igualmente à subalternidade.
  Cebolinha é uma representação escancarada do burguês, do capitalista. Vivendo num mundo de delírios e ilusões, crê fielmente ser o dono da rua, tal como o burguês crê ser aquele que domina a sociedade (por possuir o capital). A rua é o mundo dentro do universo dos personagens, é o lugar onde suas ações possuem poder de mudança. A principal função de Cebolinha é destituir Mônica, é tirar o proletário de seu lugar de direito, do governo que lhe é justo. As investidas se dão de duas maneiras: pelos planos infalíveis e pelos xingamentos. A grande piada do plano infalível está justamente em sua falha anunciada, juntamente à cegueira de Cebolinha, que vê neles uma essência de sucesso que nunca se concretizasse. São um vir-a-ser que nunca é; uma eterna promessa. São assim também os ideais capitalistas, os diversos planos liberais, neoliberais, o velho slogan thatcheriano do TINA, as falas pomposas de economistas prepotentes que prometem a séculos algo que nunca cumprem e que nunca cumprirão. Servem de esperança, mas são um meio falho porque não carregam consigo o peso imprescindível da história. Deve-se sublinhar cataforicamente aqui que esses planos infalíveis são sempre apresentados a Cascão de forma simplificada, como se fossem muito difíceis para que por ele fossem compreendidos, bem como a ele se promete a partilha dos resultados em caso de sucesso. O significado de tal comentário revelar-se-á em nosso próximo parágrafo. Ainda dentro do escopo da análise Cebolinha/Burguês, a cor da camiseta é direta em sua significação: verde, dinheiro (o dólar!, essa moeda em especial, o representante do capital físico exportado forçosamente pela mídia ianque), capital. Vale notar que Cebolinha nunca sucede com seus planos: seus infames delírios de poder são contidos pela verdadeira heroína, pela verdadeira dona da rua. Não haveria de ser de outro jeito.
  Cascão é também o proletariado, mas um proletariado subjugado. Cascão representa a figura proletário na sociedade capitalista. Mais pobre que seus outros colegas, sempre brincando com brinquedos de segunda mão, à sombra de Cebolinha, que desfruta de várias vantagens materiais (numa ponte com outra produção midiática de forte teor comunista, Chaves, a relação Chaves-Quico se mostra paralela à relação Cascão-Cebolinha nesse aspecto vital: este serve de inveja àquele; desfruta de benesses materiais que deixam o outro à mercê da boa vontade para que delas usufrua, pois sabe que nunca terá condições de obtê-las verdadeiramente). Não só como sombra, mas também como ferramenta serve Cascão a Cebolinha: nos planos infalíveis, é sempre ele que realiza as funções efetivas do plano, que põe em prática as ideais de Cebolinha, assim como o proletariado é quem deve fazer funcionar as elucubrações econômicas dos rich boys que, sentados atrás de suas longas mesas e sob seus diplomas em língua estrangeira de faculdades caras, mandam e desmandam nas políticas econômicas - mas apenas em sua teorização, pois a prática se relega aos outros, às massas. E, quando falham os planos infalíveis (leia-se: quando o capitalismo chega a mais uma de suas muitas crises sistêmicas, quando o curto fôlego do programa burguês mais recente se perde), sobra Cascão de bode expiatório que deve arcar com os espólios fiscais e com a carga moral de ser ele o culpado - porque não se esforçou suficiente. O físico é claro em sua simbologia: cascão usa roupas humildes e é sujo, representa o operário clássico, o verdadeiro chão-de-fábrica.
  Magali representa não efetivamente a burguesia, mas os ideais sociais que a burguesia emprega como forma de desmantelar o proletariado, ou, mais amplamente, o ideal burguês como um todo. É magra e bonita e isso desperta inveja em Mônica, que deseja ser como a amiga. Ora, qual seria a mais escancarada manipulação que o ideário capitalista exerce sobre o trabalhador do que despertar nele a vontade de ser como o patrão, ser tal qual o modelo que a mídia lhe impõe? Mas por trás dessa beleza se esconde uma gula insaciável, uma fome implacável: é o fardo do burguês, a constante busca material (pois é a comida um material, no sentido de físico) que nunca acabará e nunca será suprida, pelo contrário, que se mantém constante, não importa quanto se consuma. Magali usa um vestido amarelo, cor da riqueza, do ouro (que já simbolizou o poder material efetivo, nos tempos pré-dolár), do poder e da luxúria¹
  Espero ter conseguido formalizar uma base mínima daquilo que o universo comunista de Turma da Mônica consegue veicular para o leitor, sempre por meio de metáforas muito bem elaboradas como forma de mascarar o significado latente (vale lembrar que as revistas só começam a ser veiculadas em 1970, no auge da Ditadura Militar e dos Anos de Chumbo, diferente das tiras, que circulavam desde 1959, e trabalhar nas entrelinhas para passar pela censura era vital; daí advém a necessidade de esconder os significados). Acredito que ainda existem muitas arestas a serem aparadas - reconheço que minha análise de Magali é deficiente, e que omito da discussão dois pontos vitais: o medo de chuva de Cascão e a dislalia de Cebolinha. Seus significados dialéticos não me parecem muito claros na obra numa perspectiva puramente marxista, mas minhas pesquisas no campo da psicanálise freudiana sobre esses temas mostram-se promissores (como exemplo, as gotas de chuva lembram o leite materno, e despertam em Cascão um medo acachapante, que se estende então da chuva para toda água. Seria esse medo decorrente de um trauma inconsciente com a figura materna, um Complexo de Édipo mal-resolvido? Um desmame precoce (aqui a figura do leite inclusive sai do metafórico e é realmente o leite materno)). Outro ponto em que pretendo me aprofundar é na investigação da função de outros personagens: Anjinho e o papel da Igreja na formação do indivíduo; Franjinha e o mito do progresso pela ciência formal (que não deixa de ser uma forma de alienação); Denise como uma intensificação da superficialidade do consumo e do fetichismo da mercadoria; Papa-Capim como um exemplo da filosofia do bom selvagem de Rousseau; Chico Bento como uma metáfora ao proletariado rural. Desenvolvimentos futuros mostrarão caminhos mais promissores para desvendar essa obra central da cultura ocidental do século XX, que reverbera ainda hoje em nossas vidas, das bancas de jornal até os palanques do Congresso.

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¹A referência a esse pecado capital me faz saltar na memória um projeto mais amplo que desenvolvo atualmente, traçando uma análise entre os personagens principais de Scooby-Doo! e os sete pecados capitais (os cinco principais clássicos - Fred, Velma, Daphne, Salsicha e Scooby-Doo -, Scooby-Loo, que aparece esporadicamente, e a Máquina do Mistério, que argumento no trabalho ser também uma personagem), mostrando que cada um desses personagens incorpora um dos pecados de forma simbólica.